Wolinski em 2007 (Foto: Wikipedia)
Pasquim, o Charlie Hebdo brasileiro.
O ataque ao jornal francês tirou, de forma violenta, a vida
de Georges Wolinski, o mestre de tantos outros mestres do cartum mundial. No
Brasil, a notável influência do artista chegou ao Pasquim, o maior símbolo da
subversão do humor e da contestação política do país na ditadura militar
Por Maíra Streit
Ao pensarmos em ícones do humor inteligente no Brasil,
rapidamente vêm à cabeça nomes como Jaguar, Laerte, Ziraldo, Angeli e Henfil.
Mas todos eles passam da categoria de ídolos a fãs, quando se trata do
cartunista Georges Wolinski, 80, morto na última quarta-feira (7) por radicais
islâmicos. Ser o mestre de outros mestres tão respeitados é, de fato, uma
responsabilidade para poucos.
Nascido na Tunísia em 1934, Wolinski mudou-se para a França
ainda criança. Nos anos 1960, começou a desenhar para o jornal satírico
Hara-Kiri, fundou o periódico L’Enragé e contribuiu ainda para outras
importantes publicações, como Libération, Nouvel Observateur e L’Humanité. Ele
é considerado uma das figuras marcantes de Maio de 68, onda de protestos que
começou pedindo reformas educacionais e evoluiu para uma greve geral que
balançou o país e o governo do presidente Charles De Gaulle.
Com o fechamento do Hara-Kiri, os jornalistas se reuniram
para a criação de Charlie Hebdo, em 1970. Os temas políticos, religiosos e
sexuais estiveram sempre presentes. Eles disputavam espaço entre as tirinhas
ácidas e provocadoras, que ganhavam um toque a mais com os traços
característicos de Wolinski, propositadamente simples e imperfeitos.
O autor costumava brincar que, embora ele não tivesse um partido
político definido, o humor pertencia às pessoas de esquerda, “porque a direita
tem muito compromisso com a ordem”. O pensamento criativo, a ousadia e a falta
de pudor dos personagens chegaram ao Brasil como uma bomba, em uma época de
extrema tensão e resistência ao regime militar.
Com influência do irreverente cartunista francês, os
artistas nacionais passaram a se organizar em torno de um projeto que se
tornaria um verdadeiro patrimônio do humor brasileiro: O Pasquim, idealizado
por figuras como Millôr Fernandes, Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral. O
semanário começou de forma humilde, com a pretensão de ser um jornal de bairro,
e acabou como um sucesso editorial que incomodou – e muito – o sistema político
vigente.
A entrevista com Leila Diniz ao Pasquim impulsionou a
censura prévia aos meios de comunicação no Brasil (Foto: Divulgação).
“Bebíamos avidamente aquele humor satírico, cáustico e muito
engraçado. Para o ‘Charlie Hebdo’ nada é sagrado. É o humor em estado bruto. Na
época da ditadura era o que precisávamos, um humor político direto e sem muita
sutileza”, afirmou em seu site o cartunista Nani Lucas.
O cenário da contracultura da década de 1960 trouxe temas
como sexo, drogas, feminismo, divórcio, comportamento e O Pasquim se manteve
como um porta-voz das mudanças sociais. Em 1969, uma entrevista com a atriz
Leila Diniz e suas polêmicas declarações fizeram com que fosse instalada a
censura prévia aos meios de comunicação brasileiros. A Lei de Imprensa foi
batizada, de maneira informal, com o nome da atriz.
Revolucionou também na linguagem, trazendo para o jornal
expressões mais coloquiais, palavrões e gírias logo assimiladas pela classe
popular. Em 1970, praticamente a redação inteira do Pasquim foi presa depois de
ter publicado uma sátira do quadro “Independência ou Morte”, em que trazia Dom
Pedro gritando, às margens do Ipiranga: “Eu quero Mocotó!”.
Durante os meses de detenção, o periódico continuou nas
bancas, trazendo material de colaboradores como Chico Buarque, Rubem Fonseca,
Glauber Rocha e Odete Lara. As prisões se sucederam e as bancas que vendiam
jornais alternativos eram alvos costumeiros de atentados, até que muitas
decidiram não aceitar mais esse tipo de publicação. O Pasquim ainda sobreviveu
bravamente até 1991, quando fechou as portas, deixando seu nome de maneira
definitiva na história do país.
Tanto Charlie Hebdo quanto O Pasquim – com seus diferentes
contextos culturais e históricos – deixaram suas contribuições ao trazerem à
tona uma arte provocadora, que instiga o pensamento crítico e a liberdade
criativa. Infelizmente, o ataque em Paris nesta semana levou embora, de maneira
violenta, o pai de todos os bons sátiros. Wolinski perdeu a vida ao lado dos
também brilhantes cartunistas Charb (Stéphane Charbonnier), Cabu (Jean Cabut),
Tignous (Bernard Verlhac) e outras oito pessoas na sede do jornal francês.
Em 2011, quando o prédio do Charlie Hebdo foi alvo de um
incêndio criminoso por retaliação às caricaturas publicadas sobre o profeta
Maomé, a resposta veio com o desenho de um muçulmano beijando um cartunista do
periódico, com os dizeres: “O amor é mais forte que o ódio”.
Esperamos que, da mesma forma, o triste episódio possa reacender
a discussão sobre a função transformadora da arte e daqueles que se arriscam na
defesa do direito à contestação e ao livre pensar. Assim, quem sabe, novos
artistas possam, aqui e lá, continuarem com aquilo que sabem fazer de melhor:
ensinar-nos que o questionamento é a primeira e mais efetiva arma para a
mudança de realidades.
Texto e imagens reproduzidos do site:
revistaforum.com.br/blog
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